segunda-feira, 10 de outubro de 2016

JUAZEIRO DO MEU TEMPO: PROGRAMA A FACE DO MISTÉRIO - Por Jota Alcides

Ninguém pode subestimar o medo porque o medo fascina, sobretudo se tiver a força do mistério. O medo é capaz de levar os medrosos à transformação de pensamentos fantasiosos em fatos fabulosos. Como dizia Albert Einstein, "a mais bela coisa que podemos vivenciar é o mistério. Ele é a fonte de qualquer arte verdadeira e qualquer ciência. Aquele que desconhece esta emoção, aquele que não pára mais para pensar e não se fascina, está como morto: seus olhos estão fechados".Eis o argumento que pode ter gerado,sustentado e promovido o programa de maior audiência na história da radiofonia caririense. "A partir de agora, se você não tem nervos bons, desligue o rádio e vá dormir". Com este alerta preventivo e provocativo, assim começava o programa "A Face do Mistério", toda terça-feira à noite na Rádio Progresso do Juazeiro, nos anos dourados ao final da década de 1960.. Era uma audiência monstruosa, graças ao nível alto de assombração. Dirigido pelo jornalista e dramaturgo Menezes Barbosa, o programa era aguardado com ansiedade até a sua apresentação. Juazeiro inteiro parava diante do rádio em atenção e tensão acompanhando as peripécias e maldades do monstro. Nessa atração do gênero rádio-teatro, Menezes Barbosa exercitava com desenvoltura sua experiência e sua criatividade de dramaturgo que vinha evoluindo desde o tempo em que estudava no Liceu Cearense, em Fortaleza, últimos anos da década de 1930. Sua aptidão para o teatro era tão forte que, ao deixar o Liceu Cearense voltando para Juazeiro, a primeira coisa que fez na sua cidade foi criar o grupo Teatro-Escola do Juazeiro. Esse grupo fez um show memorável com a participação da excelente atriz juazeirense Albertina Marquise Branca, que morava no Rio de Janeiro onde tinha importante presença no circuito artístico e hoje é nome de teatro no Juazeiro. Cada vez mais entusiasmado com a dramaturgia, Menezes Barbosa resolveu inserir o teatro na programação da Rádio Progresso do Juazeiro. Elenco de "A Face Ministério" era mais ou menos fixo. O principal papel, o de monstro, horripilante e aterrorizante, era de João Barbosa, gerente comercial da emissora, figura humana maravilhosa, brimcalhona, bonachona, sempre de bem com a vida. João Barbosa adorava assustar os ouvintes, seu saco de maldades estava sempre cheio. Com perfil humano totalmente ao contrário do perfil de monstro, João Barbosa surpreendia se transformando em criatura perversa e cruel que parecia ter saído das profundas de uma caverna de horrores. Ou então feito um animal bizarro como um lobisomem, desses que fazem parte das lendas urbanas. João Sobreira e Wilton Bezerra, versáteis, faziam papéis variados de acordo com os episódios. Isabel Lavor era a mocinha dos gritos de horror que deixava audiência arrepiada. Aguinaldo Carlos fazia a "alma penada". José Hermano, responsável técnico da rádio, era "o cavalo da meia noite", relinchando melhor do que muitos cavalos e deixando o elenco de respiração presa contendo as gargalhadas. Além do desempenho formidável do elenco, chamava a atenção a sonoplastia do programa com seus efeitos especiais improvisados. Exemplos: o próprio Menezes Barbosa batia tamancos sobre a mesa do estúdio imitando os passos de um cavalo. Ou então balançava um pedaço de folha de zinco para fazer o barulho de chuva e de trovões. O que não faltava era imaginação. Menezes Barbosa, sozinho, já tinha criatividade para encher vários teatros com histórias de grande atração e ainda contava com a ajuda do elenco que tinha prazer em dar as mais absurdas sugestões. "A Face do Mistério" era uma peça semanal. Com seu talento crativo e sua sensibilidade, Menezes Barbosa fazia a Rádio Progresso reviver os anos dourados do radio-teatro brasileiro, nas décadas de 1940 e 1950,sobretudo na Rádio Nacional do Rio, onde brilhava o escritor Dias Gomes. Naquele tempo, os programas costumavam ter os nomes dos patrocinadores. O primeiro foi o Grande Teatro De Millus. Depois, passou a chama-se Grande Teatro Orniex, fabricante dos lustra-móveis Shell. "Os Miseráveis", "O Homem que ri",. "Madame Bovary", "O retrato de Doryan Grey", "A dama das camélias", "O corcunda de Notre Dame", "O morro dos ventos uivantes" e muitos outros títulos fizeram o sucesso do Grande Teatro de Dias Gomes, que durou quase duas décadas. Outro grande sucesso na Rádio Nacional foi o Teatro de Mistério que ficou no ar durante anos líder de audiência no Brasil inteiro. Na Rádio Progresso do Juazeiro, como quase todos os barulhos de "A Face do Mistério" tinham origem na mesa do estúdio, ela é quem mais sofria levando porradas que se transformavam em efeitos especiais com impacto de assombração e medo. Para os ouvintes, era assombração, para os participantes do elenco era diversão. "Era bom demais", testemunha Aguinaldo Carlos, que caprichava ao extremo no seu papel de alma penada. Ao final do programa, todos saiam felizes, rindo e comentando a performance de cada um. Hermano, por sua imitação de cavalo muito próxima da autenticidade, figura humilde e generosa, divertia-se com a própria cavalice e prometia que no próximo programa iria relinchar melhor.Já o brincalhão João Barbosa comemorava seu desempenho como monstro: "Conheci uma senhora, dona Violeta, que assiste o programa toda semana morrendo de medo. Disse-me que na hora do monstro corre para junto do seu oratório onde fica rezando e tremendo. Fica batendo o queixo, quanto mais treme mais reza, quanto mais reza mais treme. E mesmo depois que o programa acaba, o medo continua e a tremura também. Eita povo para gostar de assombração..."(risos). Durante a semana, Menezes Barbosa recebia dezenas de cartas de ouvintes contando "causos" reais de fantasmas, assombrações, estranhas criaturas e almas penadas. Garantiam os ouvintes que eram histórias verdadeiras, fatos verídicos, experiências reais do além, coisas de espíritos e do sobrenatural. Quem não já ouviu falar numa mulher misteriosa e fantasmagórica sem olhos vagando numa estrada deserta à noite pedindo carona? Pois bem, em respeito a todos os ouvintes que tinham tido alguma experiência sobrenatural, Menezes Barbosa fazia uma seleção dos "causos" potencialmente mais assustadores e lhes dava um tratamento romanceado e dramático. Não inventava nada, apenas aumentava um pouquinho. Em seus textos de cada episódio, ele não economizava pesadelos, dores ,medos, assombrações, fantasmas, silêncios, segredos, suspense, gritos, choros e ranger de dentes. Com esses ingredientes, o programa tinha altíssima popularidade. O ápice da confusão era quando o monstro , Joao Barbosa, partia para o ataque fatal à mocinha que ficava aos gritos pedindo socorro, provocando apreensão e desespero entre os ouvintes. Fora do estúdio, com os colegas da emissora, Joao Barbosa, com seu tino comercial aguçado, elogiava o irmão e deixava um recado insinuante: "Geraldo descobriu um negócio da China, que mexe com todo mundo, mexe com Juazeiro inteiro. É calafrio geral...Só falta agora a gente saber como ganhar dinheiro com esse negócio...Talvez vendendo calmantes!" (risos). Paradoxalmente, quanto mais a Rádio Progresso alertava os ouvintes sem bons nervos para que não assistissem "A Face do Mistério", mais aumentava a audiência do programa mal-assombrado. Assim era Juazeiro do Meu Tempo, onde o povo muito religioso por influência do Padre Cícero ficava, no mínimo,desconfiado de seres sinistros e embruscados com sua influência diabólica ainda que estivessem apenas na imaginação de uma produção radiofônica. Com sua aptidão psicológica, Menezes Barbosa sabia que a arrepiação de fantasmas que se escondem entre sombras e silhuetas mexe com o imaginário popular. Nessa época, tínhamos nas ondas do rádio no Juazeiro,, um mestre do suspense, um mestre do terror, um mestre da assombração explorando dramaturgicamente "A Face do Mistério" e causando "frenesi" , como Alfred Hitchcock no cinema. Era arte pura, teatro ao vivo, um programa para ser exibido em qualquer das grandes emissoras brasileiras com êxito garantido. Se fosse numa rádio de Nova Iorque seria, com certeza, um estrondoso sucesso popular. Basta lembrar a façanha do cineasta norte-americano Orson Welles (1915-1985), escritor, produtor e diretor teatral: Era uma noite normal de 30 de outubro de 1938, até que a rádio CBS de Nova Iorque interrompeu sua programação musical e anunciou. em edição extraordinária, uma invasão de marcianos. A notícia se espalhou feito rastilho de pólvora. Milhares de americanos, aterrorizados, fugiram de suas casas procurando um abrigo mais seguro, enquanto outros mihares ficaram ao pé do rádio morrendo de medo.Na verdade, era o começo de uma peça de radioteatro de Orson Welles que ajudou a CBS a bater a emissora concorrente, NBC, e desencadeou pânico geral nos Estados Unidos. Episódio conhecido como "Guerra dos Mundos", com a falsa invasão dos marcianos, durou apenas uma hora, mas marcou definitivamente a história mundial do rádio. No Juazeiro do final da década de 1960, toda terça-feira à noite, ficava todo mundo morrendo de medo, mas ninguém desligava o rádio para não perder nada de "A Face do Mistério", que marcou a história da radiofonia caririrnse. Era todo mundo ligado, mesmo com medo de o monstro aparecer em casa...Mais do que isso só o soluço das almas penadas com o dramaturgo fenomenal Garcia Lorca, cheio de razão: "todas as coisas têm seu mistério". Quase 50 anos depois, "A Face do Mistério" ainda é um programa lembradíssimo no Cariri: "Se você tem nervos fracos, desligue o rádio e vá dormir.." Vixe Maria!.

*Jota Alcides, jornalista e escritor, é autor de "Padre Cícero, O poder de Comunicação" e "Padre Cícero segundo Mestre Athayde".-

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