quarta-feira, 16 de novembro de 2016

JUAZEIRO DO MEU TEMPO. RALPH DELLA CAVA:OBRA MONUMENTAL - Por Jota alcides

Quem nos ensina é Cícero, não o padre Romão Batista, mas o orador romano Marcus Tullius((106-43 a.C), um dos maiores escritores da Roma antiga: "O historiador deve adotar um grau de imparcialidade, relatando os fatos como aconteceram, sem colocar as suas convicções acima de tudo".Ele reforça o pensamento de Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), um dos maiores filósofos da Grécia Antiga:: "O talento do historiador consiste em compor um conjunto verdadeiro com elementos que são verdadeiros apenas pela metade". Conhecido como Meca do Cariri até 1970, Juazeiro do Norte deu um salto de qualidade nos anos dourados de 1960. Foi um salto não apenas no seus aspectos urbanístico, social, político, econômico e cultural. Deu um salto de qualidade também no seu perfil histórico que passou a exibir ao Brasil e à comunidade internacional um novo Juazeiro. Até então a história do Juazeiro era marcada pelo maniqueísmo. Para os adeptos da escola religiosa, sincrética e dualista de Maniqueu, filósofo cristão do século III, Juazeiro ou era uma história do reino da luz, sob a influência extraordinária do extraordinário Padre Cícero, venerado como Taumaturgo do Nordeste, ou era uma história do reino das sombras sob influência do mesmo Padre Cícero, acusado de heresiarca do sertão. Era assim mesmo: de um lado, apologistas do Padre Cicero; do outro, difamadores do Padre Cícero. Muitos escritores famosos no Brasil, como Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Lourenço Filho, Otacilio Anselmo, Edmar Morel e padre Antonio Gomes massacraram Padre Cícero e Juazeiro fazendo eco ao discurso autoritário, arbitrário e tendencioso do segundo bispo do Ceará, dom Joaquim Vieira, principal algoz do capelão do Juazeiro desde o chamado Milagre da Hóstia, em 1889.As pastorais diabólicas desse bispo, presunçoso e inescrupuloso, cheias de injúrias, calúnias e difamações, lidas nas missas de domingo em todas as igrejas do Ceará, germinaram e produziram uma sólida aversão, ainda persistente, de toda a Igreja no Estado, dos Governos cearenses, da mídia de Fortaleza e de todo o povo cearense ao Juazeiro e ao Padre Cícero.Comprova isso um fato estatístico ao longo do último século: não há cearenses entre os milhões de romeiros que visitam Juazeiro em homenagem ao Padre Cícero. Omo aconteceu na recente Romaria de Finados, quando Juazeiro recebeu de uma só vez 600 mil romeiros, em sua maioria, cerca de 42% ,pernambucanos, seguidos de alagoanos, paraibanos, potiguares, piauienses e sergipanos. Felizmente, nos anos dourados de 1960, Juazeiro do Meu Tempo estava sendo palco de um estudo científico criterioso, silencioso, paciente, exaustivo e elucidativo, que iria romper a dualidade dessa história. Para reconstituir o passado histórico verdadeiro do Juazeiro, o professor Ralph Della Cava, da Universidade de Colúmbia, Nova Iorque, resolveu morar no Brasil durante 14 anos, concentrando sua pesquisa de campo em Juazeiro do Norte onde residiu com a esposa Olga, companheira de ideais..Seu objetivo: que os motivos e a significação do passado do Juazeiro ficassem claros, evidentes, inteligíveis e desnudados de mitos, fantasias e erros. Era um estudo acadêmico para defesa de sua tese de doutorado em Nova Iorque. Para isso, conseguiu dois apoios sem os quais sua obra não teria sido possível: do diretor do Colégio Salesiano de Juazeiro do Norte, padre Gino Moratelli, então guardião dos arquivos do Padre Cícero preservados no colégio; e do bispo Dom Vicente de Araújo Matos, da Diocese de Crato, onde estavam os arquivos com a visão da Igreja Católica Romana sobre o fenômeno religioso do Juazeiro. Logo descobriu que muitos estudos anteriores estavam divorciados da realidade atribuindo o fenômeno quase exclusivamente à personalidade carismática e messiânica do Padre Cícero ou ao fanatismo religioso de massas incultas de sertanejos. Como o próprio Della Cava interpreta "uma bibliografia bastante sectária, refletindo, no fundo, amargas divergências políticas e religiosas, inspiradas desde 1889, por Padre Cícero e pelo movimento - divergências essas que situam entre as mais acaloradas dos anais da história brasileira". Descobriu também que "os atores e os acontecimentos nos quais o movimento do Juazeiro se originou e se desenvolveu eram partes e parcelas de uma ordem social nacional".,ou ainda que o movimento popular religioso do Juazeiro afetou e foi afetado: pela instituição eclesiástica internacional, a Igreja Católica Apostólica Romana, pelo sistema político nacional do Brasil,imperial e republicano; e por uma economia nacional e internacional em mudança. Ancorado nessa avaliação, Della Cava seguiu determinado e inspirado em Aristóteles, Cícero e também no escritor português Fernando Pessoa, pelo seu alter ego Álvaro de Campos: "O historiador é um homem que põe os fatos nos seus devidos lugares". Com suas numerosas pesquisas e entrevistas e enorme quantidade de dados obtidos em arquivos credenciados, resultado de um trabalho disciplinado e científico concluído no Juazeiro no final dos anos 1960, Della Cava, transformado em grande "Walking Archive " fundamentou e escreveu sua tese de doutorado "Milagre em Joaseiro", que apareceu como livro no Brasil em 1976, até hoje a mais importante obra sobre Padre Cícero e Juazeiro. Sob metodologia científica, Della Cava produziu a verdadeira história do Juazeiro e do Padre Cícero, adotando, rigorosamente, o preceito do escritor, filósofo, teólogo, filólogo e historiador francês. Ernest Renan: "O primeiro dever do historiador é não trair a verdade, não calar a verdade, não ser suspeito de parcialidades ou rancores". Desde então, Padre Cícero do Juazeiro passou a ser alvo de estudos acadêmicos em todas em todos os campos do conhecimento científico. Eu mesmo lancei em 1990 "Padre Cícero, O Poder de Comunicação", o primeiro e o único livro focando exclusivamente a capacidade de comunicação dele entre mais de 300 já existentes na vasta bibliografia sobre o Patriarca do Juazeiro.Assim como o prefeito Mauro Sampaio construiu uma obra arquitetônica grandiosa- a Estátua do Padre Cícero, a segunda maior do Brasil abaixo do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, obra do século XX no Juazeiro, dividindo a história da cidade em antes e depois do monumento, Della Cava produziu uma obra acadêmica científica fantástica - o livro "Milagre em Joaseiro ", dividindo a história do Juazeiro em antes e depois dela. Depois da estátua de Mauro Sampaio, Juazeiro passou a receber maiores multidões de romeiros, chegando hoje aos três milhões por ano, e a cidade virou o maior centro do catolicismo popular da América Latina. Depois do livro de Della Cava, Juazeiro passou a ser referência de estudos científicos nas principais Universidades brasileiras. Della Cava abriu as portas do mundo acadêmico para Juazeiro. E Juazeiro passou a ter uma história dividida em antes e depois de Della Cava. Ate um Simpósio Internacional sobre Padre Cícero vem sendo realizado, desde 1988, no Juazeiro, pela Universidade Regional do Cariri, reunindo, em exposições e debates, teólogos, filósofos, sociólogos, antropólogos, psicólogos, professores, escritores, pesquisadores e outros especialistas nacionais e estrangeiros. Em sua obra, Della Cava não julga Padre Cícero, nem Juazeiro, nem os romeiros. Mas, mostra, detalhadamente, o papel de cada um num cenário político regional e nacional. E exibe, em toda a sua extensão, o drama pessoal do Padre Cícero, entre as pressões e opressões da sua própria Igreja, o ardor e clamor de seus milhares de devotos, e as ingerências e influências do coronelismo político municipal, estadual e nacional. Tempo de insurgências e ressurgências, como diria o maior sociólogo do Brasil, polímata e pantólogo brasileiro de Pernambuco, Gilberto Freyre, formado e pós-graduado na Universidade de Columbia, a mesma de Della Cava. Esse despertar acadêmico, provocado por Della Cava, continua a produzir seus efeitos pois Juazeiro é um centro dinâmico não apenas religioso, mas também demográfico, econômico, social e cultural. É o único centro de romarias do mundo que apresenta desenvolvimento geral, coerente, convergente e influente. Na demografia, Juazeiro é, há mais de um século, a cidade que mais cresce no Ceará, hoje com 270 mil habitantes (IBGE). Na economia, Juazeiro é o terceiro maior pólo da indústria calçadista brasileira (ABIC), exportando calçados para mais de 100 países, incluindo os Estados Unidos, e tem o maior shopping center do interior do Nordeste. Nos transportes, o Aeroporto do Juazeiro, com nove vôos diários e diretos para as principais capitais brasileiras, é o que mais cresce em movimento no Brasil (Infraero). Na educação, Juazeiro é hoje, com seis Universidades.inclusive sede da Universidade Federal do Cariri (UFCA) e 150 cursos superiores, o maior centro universitário do interior do Ceará e um dos mais importantes do Nordeste. Na cultura, Juazeiro é a cidade brasileira onde a população tem mais envolvimento com atividades culturais, segundo pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como resultado de tudo isso, Juazeiro é hoje um dos 72 principais mesopolos de desenvolvimento do Brasil, conforme estudo da Universidade Federal de Minas Gerais, tendo consolidada sua condição de Metrópole do Cariri. Essa notável transformação, ocorrida nos últimos 50 anos, desde os anos dourados da década de 1960, tem a ver menos com a capacidade de gestão do poder público e muito mais com a capacidade de empreendedorismo privado do seu povo, estimulado pelo Padre Cícero com seu lema beneditino "ora et labora". E tem a ver com o despertar das Universidades brasileiras, que passaram a ver Juazeiro com outros olhos, induzidas pela obra científica de Della Cava,gerando mídia nacional positiva para a cidade do Padre Cícero.E quanto mais mídia positiva, mais novos investidores nacionais e multinacionais no Juazeiro, como Walmart e Carrefour, os dois maiores grupos varejistas do mundo.. Além de receber cerca de três milhões de romeiros por ano, Juazeiro é, há mais de um século, a cidade que mais cresce no Ceará em população, em economia, em urbanismo, em educação e cultura. Este é seu grande diferencial: Quanto mais Juazeiro local, mais Juazeiro internacional. Certamente, tudo isso inspirou Della Cava a deixar, temporariamente, Nova Iorque, centro do mundo, para fazer pesquisa no interiorzão da América do Sul e escrever "Milagre em Joaseiro", a verdade histórica sobre Juazeiro, que lhe deve eterna gratidão pela obra edificada - original, magistral, doutoral, monumental. Della Cava cumpriu o fim social do seu saber como queria o saudoso Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre: "O saber deve ser como um rio, cujas águas doces, grossas, copiosas, transbordem do indivíduo, e se espraiem, estancando a sede dos outros". Parabéns!

*Jota Alcides, jornalista e escritor, é autor de "Padre Cícero, O poder de Comunicação" e "Comunicação & Linguagem das Massas"-



Nenhum comentário:

Postar um comentário